1- Herzog, Oficina, SXSW, 2025
Quando voltei da oficina de direção que fiz com o Werner Herzog nas Ilhas Canárias há duas semanas, escrevi uns textos no calor da emoção, rascunhos para algo maior que estou desenvolvendo, mas que ainda não sei o que é.
Compartilho com vocês o primeiro deles por aqui, antes de falar sobre essa turma nova da Oficina e o ano de 2025.
O QUE É PRECISO
É preciso muita coisa para se fazer um filme. É preciso muito pouco para se fazer um filme. O que se precisa muito e o que se precisa pouco é normalmente objeto de grande confusão no meio do cinema, onde o muito pode valer pouco e o pouco pode acabar sendo muito. Estou falando de grana, equipe, câmeras e lentes caras. Também estou falando de coração e, acima de tudo, estou falando de verdade. Tentarei me explicar.
O que o cinema do Werner Herzog e esses 12 dias de imersão com ele e o Peter Zeitlinger nas Canárias acabam por me dizer é que, depois de mais de cem anos de uma forma de arte que se espalhou ubiquamente como língua franca da humanidade, para chegar a uma imagem e a um plano que se justifique, você precisa de uma ideia forte e de um coração no lugar certo. E isso é mais importante do que qualquer picadeiro montado num grande set.
Lugar certo, o coração, eu escrevo. Isso não quer dizer que, às vezes, você não tenha que recorrer ao crime, falsificar assinaturas, quebrar ossos, leis – e também subverter a linguagem e os métodos consagrados do próprio cinema. Isso tampouco significa que você deve abrir mão completamente de dinheiro – em algum momento da sua vida, pode ser essencial içar um navio de toneladas por cima de um morro, o que não é grátis.
Isso talvez queira dizer que, antes de subir em qualquer cadeirinha, você precise encarar o mundo e seus personagens com brutal honestidade. Não estou falando sobre respeitar os fatos de uma época ou biografia, e sim em observar as infinitas falhas, suas e desses personagens, com alguma generosidade. O que não significa complacência, muito menos pena, e sim compreensão e integridade.
Essa observação começa com uma curiosidade imbatível e genuína sobre si mesmo e o mundo. Uma curiosidade que é, ao mesmo tempo, infantil e ancestral. Uma curiosidade que é dura, brutal e engraçada. Se o olhar vem daí, ele estará carregado de respeito, humanidade e empatia sem que isso seja uma bandeira externa. É intrínseca ao ponto de vista, estará sempre no tutano da imagem e da narrativa, sem a convenção contemporânea de “lugar de fala” como um requisito formal.
Isso é extremamente simples e, ao mesmo tempo, muito difícil de explicar e ainda mais difícil de ensinar. Mas é o trabalho de vida do maior cineasta vivo e um dos maiores inventores da história do cinema. De um dos maiores escritores de prosa e diretores de ópera vivos. Herzog odeia ser chamado de artista ("eu sou um soldado”) e há algo muito precioso nessa negação: o que importa é o procedimento. Como você se comporta neste mundo, como opera dentro dele e trabalha com ele. Você pode vender e comprar "arte". Pode inclusive vender e comprar filmes. O que não se vende nem se compra? Algo que está muito acima das representações e, especialmente, acima dos fatos: a verdade.
E, para Herzog, esse verdade não se encontra nos aspectos literais da realidade, no mero factual. O que ele chama de “verdade extática” existe através da arte narrativa, do cinema, da música, da imagem. Não se trata de pós-verdade, como alguns podem ler em tempos de fake news. Muito pelo contrário: a verdade extática propõe a revelação de uma realidade que está além do que se vê e se mede, uma verdade que se encontra na transcendência e no sublime, e que nos oferece uma compreensão mais profunda da condição humana e da natureza – dos colonizadores espanhóis e dos pinguins.
Talvez por isso Herzog tenha tanta raiva de qualquer coisa “new age” – era engraçado vê-lo reagir aos curtas-metragens feitos com a participação de um pobre xamã na oficina. Se gurus esotéricos costumam buscar algum tipo de harmonia interior, uma integração pacífica com o cosmos, a verdade extática vai na direção contrária. Ela nos desafia com outro tipo de vertigem: observar e reconhecer o caos imanente que nos cerca, a nossa insignificância na imensidão da natureza e do universo, as nossas contradições mais íntimas. O êxtase aqui não é curativo, mas desestruturante.
Foi espetacular observar como essa quebra de estrutura que está na raiz do trabalho do Herzog não é apenas simbólica, mas se traduz nos métodos de produção que ele apresenta, e que foram utilizados por alguns dos participantes da oficina. Mas sobre isso ainda escreverei mais pra frente.
TURMA NOVA OFICINA
Enquanto não consigo parar para criar um módulo II da oficina que comecei a oferecer lá em 2021, décadas atrás, em tempos ainda de confinamento, sigo melhorando e ampliando esse primeiro módulo, agora reforçado com algumas anedotas e histórias recentes dessa oficina do Herzog. Nesse post há mais informações:
2025
Já tenho um convite confirmado para 2025. Essa mesa no SXSW, em Austin, Texas:
Vamos falar muito sobre o trabalho fundamental da Media Defence, a ONG inglesa que salvou meu pescoço bancando uma defesa tão complicada que nem a defensoria pública aceitou pegar, pois não teria como chegar em todas as pequenas cidades onde fui processado. Falaremos também sobre o novo entendimento do STF sobre assédio jurídico, baseado no meu caso.
Mas estou especialmente animado porque pretendo usar a oportunidade para exibir um teaser do meu segundo longa-metragem, um road movie que tem como ponto de partida a história dos 144 processos. Comecei a rodar no 7 de setembro de 2022, em Copacabana, no meio da micareta neo-fascista promovida por Bolsonaro, e depois viajei pelos cinco cantos do país procurando alguns dos pastores que me processaram - conversando com muitas outras pessoas evangélicas pelo caminho. Estamos nos finalmentes do processo de edição e, se tudo der certo, em 2025 esse filme profundamente religioso, íntimo, colorido e musical começará a existir em público. Vai ser uma doideira doida.
Enquanto isso, eu trabalho no livro que vai sair depois. Conectado ao filme, mas que conta outra parte da história. E escrever esse romance acaba tendo muito a ver com o que Herzog fala quando fala de verdade: às vezes, para chegar a ela, precisamos recorrer à ficção.