“Sempre há, aqui, nesse instante, um vasto horizonte desconhecido — que muitas vezes só vamos entender depois. Pouco distingue as memórias dos outros momentos enquanto estão acontecendo. Nós costumamos reconhecê-las apenas mais tarde, pelas marcas que elas deixam.
Mas às vezes acontece uma catástrofe que te faz entender de imediato: a partir daquele momento, boa parte do que você é será moldada por aquilo.
Uma das ameaças mais curiosas que recebi de evangélicos bolsonaristas dizia que, quando me encontrassem, colocariam um ferro de passar roupa quente no meu rabo e empurrariam até sair pela minha boca. O que você faz quando se acostuma a ler esse tipo de coisa?
Você bebe nos mesmos bares do lado de casa, e usa as mesmas drogas, conversa as mesmas conversas, aturdido pelo entusiasmo generoso dos mesmos comparsas, os mesmos bigodes, tropeçando pelas mesmas segundas-feiras.”
Com o texto acima, montei uma sequência de voice-over sobre imagens do Skorpios (em grego: Σκορπιός) da Nestor Pestana para um dos filmes que estou cozinhando. A sequência começa quando abrimos a porta de madeira pesada e a câmera revela o escorpião de néon no caminho do corredor de espelhos do salão, refletindo feixes de raio laser ao infinito. E, depois, sob essa teia pegajosa de luzes verdes e azuis, o famigerado queijo, aquele palquinho à direita, em oposição ao balcão de madeira do bar.
O filme logo sobe pela escadinha ao mezanino dos tétricos banheiros, quase sempre entupidos, onde havia, depois de breve e esfumaçado salão, a mítica mesa apenas aberta para os mais íntimos. Dali se podia ver pelo vidro da fachada a parte de trás do luminoso vermelho com o nome do estabelecimento, Skorpios, em cursiva, e, do outro lado da rua, o grandioso mural do Di Cavalcanti, então ainda coberto por um dossel, em obras junto ao Teatro Cultura Artística. Era como estar numa viela em Hong Kong nos anos 1960 ou num filme do Leos Carax. Num bar de conspiradores e saltimbancos alucinados, entre fumaça de ópio e garrafas de absinto, onde se é amigo do dono, do corpo de baile, e o balcão é uma extensão da sua mesa de cabeceira.
Hoje o teatro reabriu, o mural foi restaurado e o Skorpios fechou para sempre. Rogério me garantiu semana passada que quebrou todos aqueles espelhos, mas acho difícil de acreditar.
Foi por um grave profundo na calçada que comecei a frequentar intensamente o lugar, em novembro de 2020. Não lembro se era sábado ou terça-feira, até porque naquela época não fazia a menor diferença. Chamo essa fase de “Alto Pandemia” e eu estava na rua para comprar comida e voltar rápido, com duas máscaras no rosto. Tudo fechado, com a exceção de poucos mercados. Mas aí ouvi a música vibrar por debaixo da porta fechada, então totalmente clandestina, e toquei a campainha num reflexo, sem pensar.
A porta se abriu como numa miragem. Deixei as sacolas de supermercado no chão, junto com as máscaras. Havia apenas eu, o Rogério e outros dois intrépidos por ali. Era a primeira vez que eu ouvia música alta num ambiente de luzes coloridas em quase um ano, e ali você podia botar pra tocar sua playlist alcalóide com absoluta liberdade, além da cerveja sempre gelada. Saí daquele speakeasy pandêmico quando já amanhecia.
Desde então, foram muitas festas e conversas absurdas, de muitas horas em loop neurótico, com taxistas e gondoleiras, mercadores de variadas especiarias e partidos, guerrilheiras da noite e outros répteis de hábitos noturnos em meio de semana como eu, que ensaiei por ali muito do que iria escrever e filmar nos anos seguintes, entre viagens e cruzadas diversas. Ouvi e dei conselhos a desconhecidos, fascinado com nosso talento para a esperança, a fatalidade da felicidade “em todos os seres!”, a igreja de ecumênica ideologia que formávamos em meio ao terror dos confins brumosos que tínhamos do lado de fora. Aquilo era uma encruza, um daqueles estabelecimentos de beira de estrada onde, nos filmes de faroeste e no meio do fim da noite, esbarram-se cotovelos das mais variadas procedências.
Não tenho como agradecer a generosidade de todas as pessoas com quem cruzei naquele gongórico balcão. Até porque ele não existe mais.
Se o tempo costumava parar dentro do Skorpios, num estado de suspensão fora do mundo, agora o Skorpios é que meteu-se para dentro do tempo, como um daqueles castelos sem janelas destinados a ficar. Não enquanto forma imperfeita neste mundo de aparências, como dizia Bandeira, mas na eternidade, intacto —suspenso no ar.
O Skorpios ganhou nesses anos velozes a pátina de outros lugares já obliterados e mitológicos para mim, como o Cirandinha de Copacabana, que virou uma loja de departamentos, e o Old Navy de Paris, convertido numa loja de conveniência e depois num café genérico. Entre as manhãs da Nossa Senhora de Copacabana e as madrugadas no Boulevard Saint Germain, agora há uma praça iluminada por arranjos cinéticos de néon sobre as nossas cabeças, aqui mesmo na Nestor Pestana. Fico feliz porque tenho a impressão que registrei as últimas imagens, em cinema, daquele lugar. É sempre muita coisa, gente e noites que escapam como peixe e nos perdemos tantas vezes nos lugares — e, depois, deles. E nada, nunca, volta ou voltará.
Esse voice-over, por agora, está terminando com imagens minhas vestido de padre (!), um vero Jean Meslier, no estupefaciente karaokê da esquina, um capítulo relevante dessas aventuras, com as duas frases abaixo — e uma pausa grande entre elas, onde dou a mão a minha nobre e amada Dulcinéia, olhando para o precipício cubista que é o mosaico do Di Cavalcanti em frente ao Skorpios:
“Alguém cita Oscar Wilde: “A única diferença entre o santo e o pecador é que todo santo tem um passado e todo pecador tem um futuro.”
Tem dias que sinto saudades de quando delirávamos e sofríamos por amor, e não pelo futuro da humanidade.”
Absolute cinema
quando abrir teste pra atriz desse filme, me chama, saudades :)