1.
Enrique Vila-Matas é o único cliente de um restaurante chinês localizado no subúrbio de uma pequena cidade alemã. Na mesa redonda no canto do Dschingis Khan, há um vaso de flores e um cartaz amarelo gasto que diz: “writer in residence”. O autor catalão, sem conseguir esconder a expressão de pânico no arco das sobrancelhas, inaugura sua caderneta vermelha com duas frases: “Mudar por completo de vida em dois dias, sem se importar com o que aconteceu antes, ir embora assim, sem mais. Afinal de contas, o correto é partir.” Os escritores convidados que o precederam no posto, como Alejandro Zambra e Mario Bellatin, cumpriram a mesma missão: escrever em público e ficar disponível a qualquer um que desejasse espiar suas palavras ou, no pior dos casos, conversar.
Vila-Matas passará os próximos dias procrastinando a solitária exposição no restaurante chinês mais melancólico que já viu, hostilizado por funcionários e, com raras exceções, ignorado pela platéia, que apenas comparece para comer. Inventará personagens e nomes ridículos para si mesmo (como Autre e Piniowsky, baseado num personagem menor de um conto do escritor austríaco Joseph Roth), se perderá em paranóicos jogos mentais e, quando não estiver se perdendo também nas ruas, será guiado por jovens curadoras pelas obras da 13ª edição da Documenta de Kassel, a mais importante exposição de arte contemporânea do mundo realizada a cada cinco anos.
O convite à residência artística intitulada Chorality, a writer’s residency no verão de 2012 foi transformado em Não há lógica em Kassel, publicado no Brasil em 2015 pela Cosac Naify com tradução de Antônio Xerxenesky. Mistura de reportagem romanceada, ensaio e diário de viagem, o livro resultante da experiência é uma reflexão metaficcional sobre literatura, arte contemporânea e, como veremos, a própria natureza da prática performática do autor.
2.
Os romances, novelas e contos de Enrique Vila-Matas, nascido em 1948, em Barcelona, são híbridos que transitam entre a ficção e o ensaio — ou algo que ele gosta de chamar de 'semificção'. Simulação e desaparecimento são eixos de sua obra, cujos livros mais importantes — como os conhecidos Bartleby e companhia, de 2000, O mal de Montano, de 2003 e Dublinesca, de 2010 — têm como tema central a própria literatura, colocando em cena personagens escritores, editores e críticos às voltas com problemas mui literários: o bloqueio criativo, o plágio e, claro, o desejo de nunca mais escrever.
O motor da escrita aqui muitas vezes é sua própria negação, numa prosa marcada por um labirinto de referências que muitas vezes lembra um labirinto de espelhos distorcidos, como aquele presente no clímax de A Dama de Shangai de Orson Welles. E o que o melhor Vila-Matas promove é semelhante tiroteio em cenário que reflete ao infinito os impasses da literatura, da arte e da humanidade sobre a Terra.
Muitas vezes, como no filme, alguns espelhos são falsos. Sua máquina auto-consciente parece querer levar às últimas consequências a poética da “segunda mão”, de Jorge Luis Borges, como definida pelo escritor argentino Alan Pauls, em seu livro O fator Borges, em que o texto se insere como introdução ou comentário a outro, frequentemente inexistente. Assumindo o mesmo “parasitismo literário” do qual Borges foi acusado em seu começo, Vila-Matas mistura em seus livros fatos e autores reais e fictícios, atribui citações a autores errados, rouba citações para si — e nem sempre confessa. Aos leitores, nos resta caminhar sobre esses cacos de vidro, talvez remontando esses fragmentos internamente, em novos arranjos.
3.
Não há lógica em Kassel não é caso único na aproximação de Vila-Matas com a arte contemporânea. Tal universo tornou-se não apenas tema importante, mas um lugar de reinvenção para o autor. É o que vemos nas parcerias com as artistas Sophie Calle, Dominique Gonzales-Foerster e, mais recentemente, na obra solo Cabinet d’amateur, an oblique novel (2019), cujo título é uma homenagem a Cabinet d´amateur, romance de Georges Perec de 1979.
Assumindo o papel de curador de uma exposição, nomeada por ele como um “romance”, Vila-Matas selecionou, entre mais de mil obras de arte contemporânea da Fundação la Caixa, as que teriam relação com sua trajetória de autor. Há uma pintura de Gerard Richter (I.G., 1993), uma escultura de resina e areia de Juan Muñoz (Conversation piece, 1995), entre outras. Cada uma delas relaciona-se com um trecho de sua obra e biografia, o que faz do catálogo da exposição um misto de ensaio e ficção em que Vila-Matas contrapõe as obras às suas obsessões. Para ele, a exposição, que ficou em cartaz na galeria Whitechapel em Londres até abril deste ano, “é uma espécie de romance para armar.”
No entanto, com o seu encerramento, esse jogo perde algumas peças importantes — a fruição total dessa obra composta por diferentes meios, arquitetada por um romancista curador de artes visuais, fica reservada para quem esteve por lá. Aos que não foram, resta o livro-catálogo.
4.
Talvez estejamos diante do mesmo modelo irresoluto em Não há lógica em Kassel. A cada página o livro nos apresenta longas reflexões sobre arte contemporânea e obras sendo descritas e dissecadas por Vila-Matas, que também faz a curadoria do que decide nos narrar e traduzir. Mas como transmitir a experiência de interagir com instalações presenciais? Se as analogias entre as artes levantam problemas desde a antiguidade, o que dizer de uma obra como I need some meaning I can memorize (The insibible pull) de Ryan Gander, que consiste numa corrente de ar artificial sentida pelos visitantes do prédio principal da Documenta, algo que nem sequer pode ser fotografado? Vila-Matas responde ao desafio ecfrástico a descrevendo como “brisa etérea que parecia empurrar de leve os visitantes, dando a eles uma suave e inesperada força, um ímpeto suplementar” e conclui, algumas páginas adiante, “o fato é que houve um antes e um depois daquela corrente de ar que me pareceu, diante de tudo e acima de tudo, criadora de uma luz própria.”
Outra obra da Documenta que fascina Vila-Matas é This Variation, de Tino Sehgal, que consiste numa sala completamente escura onde “uma série de pessoas esperavam os visitantes para se aproximar deles, e, caso achassem oportuno, cantar músicas e oferecer a experiência de viver uma obra de arte como algo plenamente sensorial”. Em sua segunda incursão, depois de algo semelhante a um ataque de pânico, o autor diz: “Me senti completamente fora deste mundo, o que, ao mesmo tempo, me causou a sensação de ter captado a estrutura interna da vida, como se um relâmpago a iluminasse.”
Se ainda há a ilusão auditiva de instalações sonoras invocando bombardeios no parque da cidade, quase destruída por completo pelo fogo britânico na Segunda Guerra Mundial, e também o som terrível do holocausto na ponta da plataforma central da Haupbanhof, o périplo de Vila-Matas na Documenta encontra seu clímax em Untitled, de Pierre Huyghe, um jardim semi-destruído que evoca o mote da Documenta 13, construção/desconstrução, onde o autor decide passar uma noite alucinada no terço final do romance.
A extensa flanerie de Vila-Matas por instalações na Documenta de Kassel oferece uma coleção de soluções descritivas que tentam lidar com a impermanência, a efemeridade e o uso de múltiplos suportes na arte contemporânea. Se visto apenas como relato, como o autor sugere em alguns momentos do texto, o livro poderia nos evocar um catálogo romanceado, criado por meio de uma complexa mediação curatorial, algo que o autor talvez tenha realizado plenamente não em 2014, neste livro, mas em Cabinet d’amateur, an oblique novel, cinco anos depois.
Mas Não existe lógica em Kassel pode ser mais do que simplesmente isso.
5.
A curadora Chus Martinez é lembrada por Vila-Matas afirmando que “a Documenta não é uma exposição como as outras, pois não foi pensada apenas para ser contemplada, mas também para ser vivida.” Como então Vila-Matas, ao mesmo tempo homem-obra em exibição e flaneur curioso pelo novo, viveria essa exposição?
Ainda que já tenha declarado que “o verdadeiro escritor deseja somente escrever; busca mais a solidão para escrever do que a aparição em público” e que “a aparição midiática do escritor é a antítese da essência de seu ofício”, Vila-Matas não se furtou a ocupar espaços em festivais de literatura, num circuito já altamente formalizado onde o uso da palavra “performance” para definir a apresentação de prosadores e poetas virou lugar-comum. Entretanto, no palco da Documenta de Kassel, o escritor ensaia colocar sua escrita numa zona limítrofe, porosa, não apenas entre ficção, autobiografia e ensaio, mas também entre literatura e prática performática no contexto mais amplo da arte contemporânea.
Autores como Reinaldo Laddaga defendem a ideia de que a produção contemporânea mais ambiciosa e inventiva é aquela onde se encontra a exposição do artista e de seus processos misturando-se à obra. Seria o oposto da poética proposta por Paul Valéry, estipulando uma separação entre o artista e o receptor — os “efeitos da arte” estariam justamente nessa divisão e opacidade, um tecido que parece cada vez mais esgarçado nos dias de hoje, em que os mágicos insistem em nos revelar de onde tiram seus coelhos.
Da mesma forma, a arte contemporânea mais contemporânea, por assim dizer, seria aquela que questiona radicalmente a autonomia da arte — não haveria mais aquele espaço puramente artístico, separado do “espaço da vida”, como dizia Benjamin. A Aura estaria fora de museus ou molduras, em todos nós — especialmente caso estivéssemos na Documenta ao lado de Vila-Matas. Sobre a desconcertante exibição, ele chega a se perguntar, na mesma toada: “alguém aqui teria coragem para pendurar um quadro em uma parede?”
Tais transbordamentos, a confusão entre autor e narrador e a abertura de seus procedimentos, são largamente explorados em outros livros de Enrique Vila-Matas. Mas talvez aqui o autor assuma algo distinto, uma vez que são acrescentadas novas matizes à tradicional fusão entre autor e narrador que indicam uma auto-representação e a construção de uma imagem de autor-personagem altamente codificada, principalmente ao se apropriar de outros meios — no caso em estudo, a arte da performance.
Vila-Matas, em uma conhecida entrada do seu “Dietario voluble” (2008), fala sobre observar, aos dezessete anos de idade, Marcel Duchamp jogar xadrez num café em Cadaqués, sem saber que Duchamp havia abandonado a pintura para se tornar ele próprio uma obra de arte: “Não nego que há tempos a ideia de seguir o exemplo duchampiano me seduz, mas acho que, para dar esse passo, eu teria que contratar um escritor que fosse testemunha de tudo, que me seguisse e narrasse, isto é, teria que contratar um escritor para contar como abandonei a escrita, como me dediquei a transformar minha vida em obra de arte.”
No ensaio El arte de vivir en arte (2012), o escritor argentino Alan Pauls define o conceito de “literatura expandida” como aquela que se configura ao redor de performances, gestos e procedimentos extra-texto: “série de gestos que objetivam uma maneira artística de estar presente, corporizar-se, intervir no suporte que é a dimensão visível do mundo” e que “enunciam um testamento estético-político, uma atitude, uma estetização de si.” Para Pauls, tal “literatura em pessoa” apresenta uma forte conexão com a arte contemporânea, em especial com a performance e com a arte conceitual. Partindo do gesto de Duchamp, que “inventa que a arte não é uma questão de obras, nem de beleza, nem de formas: é um assunto de decisão, de tomar decisões e aplicá-las sobre objetos, corpos, espaços, instituições.” Como Vila-Matas na Documenta, esses autores criam uma espécie de vida ready-made.
Não é por acaso que Vila-Matas tenha levado em sua viagem para a Alemanha um velho exemplar de Romantismo, de Rudiger Safranski, onde se lê que “o mundo e a existência justificam-se unicamente como fenômeno estético”. Logo depois dessa citação, ele se pergunta: “não vim a Kassel procurar justo o instante estético?” Talvez ele tenha se convertido no que foi buscar.
6.
Depois de constrangedor e cômico telefonema com a curadora-chefe da Documenta, um angustiado Vila-Matas realiza o exercício de imaginar o que poderia ter dito na chamada, algo que os franceses chamam de “l'esprit de l'escalier”: “o momento em que você encontra a resposta, mas ela já não serve, porque você já está descendo a escada e a réplica engenhosa deveria ter sido dada antes, quando você estava lá em cima”.
Em Não há lógica em Kassel o autor confessa que, se algum dia escrever a história da sua viagem, trabalhará com o espírito da escada. Trataria essa “réplica engenhosa” de encontrar uma verdade superior através da ficção? Uma busca moral? Ou escrever com o espírito da escada seria apenas vaidade? Para Enrique Vila-Matas, acreditamos, trata-se acima de tudo de uma muito bem humorada vingança.
7.
A viagem de Vila-Matas pela Documenta de Kassel é também uma narrativa de conversão. Se na primeira frase do livro ele anuncia que “quanto mais de vanguarda é um autor, menos pode se permitir ser classificado dessa forma” e depois, em chave irônica, diz buscar na cidade alemã “o mistério do universo”, logo confessa: “Eu tinha me proibido de debochar sistematicamente, como tantos outros, de certa arte de vanguarda que aspira à originalidade. E eu tinha me proibido porque sabia que sempre foi muito fácil para os idiotas insultar essa arte e eu não queria ser esse tipo de gente. (…) Eu me proibi de debochar sistematicamente de certa arte de vanguarda, ainda que não perdesse de vista que talvez os artistas de hoje não passassem de um bando de ingênuos, cândidos que estavam por fora de tudo, colaboradores do poder que nem sequer se davam conta disso.” Depois admite que “não sabia nada sobre nenhum dos participantes da Documenta 13.”
No final, Vila-Matas parece transfigurado: “Kassel tinha me contaminado com criatividade, entusiasmo, curtos-circuitos na linguagem racional, fascinação diante de momentos e descontinuidades que procuravam sentido no ilógico para criar novos mundos. Talvez tanto otimismo se devesse ao fato de que em Kassel tinha recuperado as melhores lembranças do meu início como artista. Minha admiração, por exemplo, por aqueles que fizeram da escritura o seu destino: Kafka, Mallarmé, Joyce, Michaux, aqueles para quem a vida mal era concebível fora da literatura, aqueles que fizeram, com suas vidas, literatura.”
Talvez a experiência de Kassel — e isso inclui as horas passadas no obscuro restaurante chinês, o deambular perplexo pelas ruas, os mal entendidos com a organização do evento, o passeio entre obras de arte convertido numa obra em si — tenha sido o mais próximo que o autor catalão chegou do projeto impossível, inspirado por Duchamp, de “contratar o escritor que fosse testemunha de tudo” e que ao final relatasse seu desaparecimento e sua transmutação em homem-obra. Só que aqui, Vila-Matas é os dois, ou os três, ao mesmo tempo: o que desaparece, o que se transforma, ele mesmo, num ready-made — e o que narra tudo, do alto da escada.
Que texto maravilhoso! Expandiu - e muito - a leitura que fiz desse livro. EVM é meu autor preferido desde sempre. Obrigada ☺️
Caramba, que texto. Cada vez que te leio aqui, lembro por que decidi escrever – e publicar. Eu pagaria (fica a dica) para ler um desses toda semana.