Quando voltei da oficina de direção que fiz com o Werner Herzog nas Ilhas Canárias agora no final de setembro, escrevi uns textos no calor da emoção, rascunhos para algo maior que estou desenvolvendo, mas que ainda não sei o que é. A primeira parte está aqui.
Compartilho com vocês a continuação, com adições & edições ao que circulei por outra rede.
DIAS DE PRINCESS
No primeiro dia, o Werner Herzog deu o mote da oficina: “depois do fogo”. Teríamos doze dias para escrever, filmar e montar um curta a partir desse tema ali em La Palma, bem ao pé do Cumbre Vieja, no terceiro aniversário da sua erupção. A ilha, a mais alcantilada e vulcânica do arquipélago espanhol das Canárias, a apenas 100 quilômetros do Saara Ocidental, teve em 2021 a pior erupção da sua História, afetando uma área de 1000 hectares, 10 quilômetros quadrados. A topografia de La Palma ganhou um delta vulcânico e bairros inteiros foram engolidos pela lava, desalojando cerca de 7 mil pessoas. Como Herzog realizou uma tetralogia sobre vulcões, com dois desses filmes relativamente recentes, o tema não era muita novidade para ninguém ali. O território, sim.
Os primeiros dias foram dedicados a visitar locações em áreas destruídas e os seguintes à escrita e filmagem, com as ideias começando a se estruturar a partir dos espaços. A produção nos ofereceu autorizações para rodar por ali e também uma pasta com cem atores e personagens locais que poderíamos usar. Algumas dessas visitas tinham o depoimento de alguns dos antigos moradores daqueles bairros hoje cobertos por pelo uma capa que podia chegar a 20 metros de lava vulcânica.
A primeira vez que paramos na beira de uma estrada e nos deparamos com um descampado cheio de lava seca, eu pulei um pequeno muro e fui andar por ali.
O formato que a lava ganha quando seca é monstruoso, fora desse mundo. O chão ganha uma textura de cristais afiados como facas. E caminhar alguns metros por ali já começa a escaldar seus pés, tive que tirar os sapatos quando voltei para o ônibus (eles definitivamente não eram pra isso).
Todas as noites, seja lá o que acontecesse antes, o Werner Herzog, em boa parte do tempo acompanhado pelo fotógrafo Peter Zeitlinger, fazia um Q&A de umas 2 a 3 horas numa sala de convenções, comentando cenas e trechos de filmes que os dois fizeram juntos. Em uma semana disso, enchi um caderno de notas só com aspas e anedotas absolutamente destruidoras. Pretendo talvez organizá-las numa versão posterior desse texto.
Ali, as duplas também apresentaram seus projetos e às vezes o Herzog chamava as pessoas para estar ali com ele, despretenciosamente batendo um papo. Como se nada fosse.
Seria uma experiência extraordinária por si só, mas algo mais reforçava a sensação de irrealidade: estávamos completamente isolados num gigantesco resort tropical all-inclusive, do lado do cume de dois vulcões e a pelo menos uns 40 minutos de carro da zona urbana mais próxima: o La Palma Princess.
Como cheguei muito cedo no primeiro dia e o compromisso era apenas um cocktail de boas-vindas à noite, passei minha primeira a tarde toda no complexo de piscinas do lugar, que tinha um pool bar no meio e tocava deep house ininterruptamente.
Dias depois, Herzog me comentaria duas vezes sobre essa música usando a mesma frase, o mesmo tom: “a pessoa que faz essa música deveria ser executada, sem julgamento”.
O público era composto por alemães, alguns russos e muitos espanhóis, das próprias Canárias. Passei o dia tentando ouvir o que eles falavam, entre muitas cervejas. Nos próximos dias, eu ficaria obcecado pelo resort, especialmente depois de saber que, quando o Cumbre Vieja entrou em erupção, o hotel foi usado como abrigo para centenas de famílias desabrigadas, que ficaram meses ali sem poder frequentar a piscina.
Eu tentava ler a situação, com o máximo de disciplina que aquela rotina maluca dentro de um hotel com bebida liberada permitia. Para tentar tirar dela alguma história. Lendo a paisagem e surfando no caos, como diria o Herzog, tentando batalhar algo verdadeiro daquela situação onde estava metido.
Decidi tentar usar o hotel no pequeno filme que iria propor. Decidi também fazer algo fora do tom grave que o desastre sugeria. Me surgiu a imagem de uma família de desalojados pela lava, que talvez hoje morasse num daqueles bairros com casas provisórias improvisadas em containers que existem pela ilha. Eles, que talvez tivessem duas filhas, iriam passar um final de semana no resort. Pagando, dessa vez, para poder encher a cara livremente na piscina.
As filhas ficariam soltas pelo hotel, como tantas crianças que vi correndo perdidas por ali, e talvez entrassem num jogo meio louco de ouvir o vulcão, e cantar para tentar acalmá-lo. O filme teria duas partes, uma focada nos pais perdendo a linha no hotel, e outra nessa mundo fabular, com as crianças fugindo do mundo dos adultos para uma deriva em paisagens vulcânicas onde elas, atraídas pela voz do Cumbre Vieja, inventariam algum tipo de ritual religioso maluco.
Tive a sorte da produção da oficina me parear com a genial e experiente fotógrafa mexicana Mariel Baqueiro que, além de tudo, foi generosa e insensata o suficiente para de pronto aceitar a ideia selvagem de filmar uma comédia de ficção sobre stress pós-traumático num resort e na base de um vulcão. Com crianças. E diálogos improvisados e escritos em cena.
Assistimos todos os testes dos atores e logo escolhemos as talentosíssimas atrizes, Zaida Ferrera Herrera (a mãe), Nuria Medina Rocha e Miriam Medina Rocha (as filhas, irmãs gêmeas). Eu fiz o papel do pai bêbado e fanfarrão porque tínhamos um limite para o número de diárias de atores que poderíamos usar. E porque achei que seria divertido. Na hora tentei justificar essa opção dizendo que interessava fazer algo fora da “zona de conforto”, mas isso era só conversa: não lembro de ter operado nessa zona em um só único dia da minha vida. Eu talvez só estivesse querendo experimentar novos métodos para o incômodo, que, afinal, é sempre didático.
A equipe de filmagem era eu, Mariel e os atores. Tivemos também o fundamental apoio da mãe das meninas, Tania Rocha Rodriguez, que esteve no set sempre que elas lá estavam e nos apoiou com assistência e caronas. Além de fazer pai de gêmeas, fiz outra coisa que nunca tinha feito antes e que me pareceu tão impossível quanto: operar o som. O contrato da oficina dizia que diretores e fotógrafos deveriam dividir tarefas e assim me vi na posição de precisar aprender a montar e operar um gravador, um boom e microfones de lapela. Depois da primeira diária, prometi a mim mesmo nunca mais apressar um operador de som direto na minha vida.
Num próximo texto, tentarei contar mais sobre essa filmagem-guerrilha e, principalmente, recordar os comentários sobre ela feitos pelo Herzog, que acompanhou estágios distintos da montagem, e pelo Peter Zeitlinger, que também esteve em locação conosco.
OFICINA EXPERIMENTAL DE CRIAÇÃO
Ainda temos algumas vagas para a turma da Oficina que começa agora no dia 20 de novembro. São quatro encontros de duas horas com muito assunto, incluindo essa experiência recente. Mais informações na galeria abaixo ou mandando um e-mail para oficinacuenca2021@gmail.com.
Alguma pergunta sobre a Oficina? Pode também mandar pro chat:
obrigada por compartilhar esses momentos incríveis, J.P. - faço eco da citação Herzoguiana “a pessoa que faz essa música deveria ser executada, sem julgamento” haha - e para quem lê este comentário, indico a oficina de criação de olhos fechados (se pudesse faria novamente).
Que experiência linda, parabéns!