O prazer de sair de casa, beber num späti e navegar bêbado e sozinho as ruas de Berlim. Nenhuma capital européia parece tão escura — os postes esparsos iluminam a copa das árvores em tom sépia, refletem nas pedras escuras da calçada um dourado fosco, mortificado. É como se a cidade inteira estivesse iluminada por abajures velhos e muito distantes uns dos outros.
Ainda assim, busco mais sombra. Escolho o caminho muito mais longo até meu endereço, caminho pela beira do Maybachufer, de onde vejo as águas do canal rolando plúmbeas e silenciosas sob os ciprestes, ou pelos gramados ermos da Mariannenplatz e do Görlitzer Park. Ou, ainda, em deambulações excêntricas pelo deserto Hasenheide, onde Berlim transforma-se muito rapidamente numa civilização remota, que observamos pelo distante reflexo das luzes elétricas nas nuvens margeando o horizonte.
Às vezes, no meio do largo descampado, no breu absoluto, fecho os olhos enquanto caminho sobre a grama. E sigo assim, como um cego, mergulhando no escuro, passo a passo, por alguns segundos ou minutos desse jogo, até encontrar algum limite que me faça abrir o olho: desequilíbrio, falta de ar, pavor — ou a imagem do que deixei para trás, do outro lado do oceano.
Tudo é uma grande conspiração para que você desista. A vida, essa caminhada, suas infinitas distrações. Tudo exige que você se ocupe, sempre, de algo mais ou menos urgente. Mesmo que haja tempo livre, o que vai te sufocar como um peixe se contorcendo na superfície, nada pode ser menos natural, gestual, expontâneo, do que escrever.
(Thomas Mann: “O escritor é alguém para quem escrever é mais difícil do que para as outras pessoas.” César Aira: “Os que podem fantasiar com escrever são os leitores, a humanidade. Um escritor, não.”)
O período infértil desse ser assolado pela desistência é um espetáculo apenas encenado em sua totalidade para uma pessoa: ele mesmo. Como o artista da fome do Kafka — nenhum vigilante é capaz de passar dias e noites ininterruptos vigiando sua cela. Imagina-se que a honra de sua arte o proíba de quebrar o compromisso, mas não há quem possa dizer que o jejum é mantido sem falha. Apenas o artista pode ter essa certeza e ser o espectador perfeito do seu próprio jejum. Da mesma forma, só ele sabe, como nenhum outro iniciado, como é fácil e irresistível não escrever.
Alguém pode imaginar que o escritor irá ceder à tentação de trapacear — e em algum momento de breve luz rabiscar algumas linhas. Mas isso demora, ainda. Desistir é prazer incomparável ao de efetivamente fazer qualquer coisa.
Mesmo assim, o apetite, aqui às vezes traduzido num vago sentimento de indecência, vencerá. Cedo ou tarde, você volta a escrever. E se arrependerá disso — como sempre, não vai fazer diferença.
Trrrue grrrit poet!
uh. por um momento deu até para deambular pelo descampado breu de Berlim com esse seu belo relato. ressoou aqui sobre a minha relação com a escrita, e algo como “with or without you”, do U2, me veio aos ouvidos. era isso ou um bolero rs.
enfim.
parece que me mantenho em jejum por um período tenebroso - será que para aumentar a minha fome a um nível monstruoso? -, até que começo a escrever textos homéricos para a dentista e os veterinários do meu cachorro, e daí percebo que estou agindo socialmente estranho e preciso voltar urgentemente a trabalhar. rs. (talvez isso também inclua fazer comentário no texto dos outros? não é de se descartar essa possibilidade.)
enfim (de novo).
enquanto ando “bêbedo” e cambaleante a esmo por aí, fazendo questão de me distrair com a primeira coisa reluzente minimamente justificável que surgir, um modo sorrateiro de me manter afastado de escrever, tenho botado a culpa no Tempo, me prestando ao patético papel do artista perturbado, amaldiçoado pelo seu próprio daimon, me deixando ser assolado por “Ele”, a entidade suprema que me rouba o espaço e as horas. mas, procurando ser muito honesto, até quando posso me ludibriar? cá entre nós, ando desconfiado de que talvez eu seja o tempo. meio que escrevi isso no meu primeiro texto aqui no substack.